Chef Aimé Barroyer - A entrevista perdida

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Em 2008, enfiei na cabeça que tinha de fazer uma entrevista ao chef Aimé Barroyer. Na altura ainda nem sonhava que iria dedicar-me mais a sério a estes assuntos à volta da gastronomia, mas interessava-me saber mais sobre a sua história. Sobretudo, o que tinha levado um super chef francês a escolher Portugal para viver e trabalhar, revelando um orgulho e uma paixão quase obsessiva pela gastronomia portuguesa.

Na altura, chefiava a cozinha do Pestana Palace Hotel, onde fez um trabalho exemplar e revolucionou a forma como os portugueses olham hoje para os restaurantes de hotel.

Depois de o ter conhecido e ter idealizado a ementa do casamento da minha irmã (o melhor casamento em que comi até hoje), perguntei se estava interessado em falar comigo.

Passámos algum tempo juntos. Conversámos várias vezes na magnífica cozinha velha do Pestana Palace, apanhámos cogumelos na Tapada da Ajuda e partilhámos esta paixão pela comida. Foram, acima de tudo, tempos de grande aprendizagem, pois nunca tinha entrado na cabeça de um grande chef.

Pouco depois, tentei publicar o resultado em algumas publicações. Mas, por qualquer razão, a entrevista foi parar à gaveta. Agora, decidi voltar a pegar nela por várias razões. Em primeiro lugar, porque a história do chef Aimé Barroyer merece ser conhecida e o seu legado reconhecido. Depois, porque, ao reler esta entrevista passados estes anos todos, descobri que muitas das ideias que o chef Aimé tem sobre o panorama gastronómico português continuam actuais. A ferida continua bem aberta, por isso resolvi não fazer qualquer actualização ao documento original. Aqui está:

(fotos de Bruno Raposo)

Nascido e criado em Nancy, França, discípulo de Paul Bocuse e apaixonado pela gastronomia tradicional portuguesa, Aimé Barroyer aterra em Portugal em 2001. Nessa altura, aceita o convite do recém-aberto Pestana Palace Hotel, em Lisboa, para comandar a cozinha do Restaurante Valle-Flôr. A ideia era aliciante, mas adivinhava-se altamente exigente: redescobrir o sabor autêntico das receitas das nossas avós, dando-lhes projecção internacional e um cunho sofisticado, sem beliscar o paladar dos mais conservadores. Aos 48 anos, o “chef” que gosta de cozinhar nos tempos livres não hesita, contudo, em apontar o dedo à realidade portuguesa e lança o aviso: “a gastronomia feita por portugueses tem de ser portuguesa. Mais nada”. Esta é a história de um francês que um dia quis devolver o orgulho aos sabores portugueses. Para Aimé Barroyer, o cozinheiro é apenas o maestro de uma orquestra composta por alimentos.

Quando é que percebeu que queria ser cozinheiro?

Eu não nasci cozinheiro. Tinha 23 ou 24 anos quando comecei a fazer as minhas receitas e foi só aí que comecei a ganhar algum prazer a cozinhar. Até essa altura, isto era apenas um trabalho. Mas tive a sorte de ter dois pais completamente diferentes. O meu pai era militar de carreira e estava muito ligado à terra. Em casa, dedicava-se de forma espontânea ao convívio à volta da mesa e acabou por me incutir essa curiosidade pela gastronomia. Havia uma ligação à terra completa. A minha mãe era costureira, corria o mundo inteiro a acompanhar os grandes costureiros franceses, e odiava tudo o que estivesse relacionado com a cozinha. Odiava o cheiro a cozinha e para ela aquilo era um sítio sujo… Nem sequer sabia temperar qualquer alimento. E também odiava o campo. Para ela, os camponeses eram pessoas rudes que não sabiam vestir-se. Esta era a visão comum de uma parisiense que vivia da moda.

E a vontade de ser cozinheiro chocou a sua mãe?

Sim. A minha mãe disse logo que isso não era uma profissão. O meu pai pôs-me à vontade, mas a minha mãe só perguntava ‘porquê?’. Naquela altura, um cozinheiro não era ninguém. Ela só começou a reconhecer o meu trabalho quando fui trabalhar para Paris. Aí ela ressuscitou!

Adaptou-se bem a Paris?

Adoro o campo, mas a vida em Paris sempre foi mais fácil. É por isso que me sinto bem em Lisboa. Tenho muitas saudades do campo, de andar por lá, sentir e respirar aquele ar, mas a cidade é incontornável. Devo ter herdado isto da minha mãe, não sei… (risos)

Foi nessa altura que conheceu Paul Bocuse… [um dos mais reputados cozinheiros franceses]

Não. Primeiro estive em Paris, depois tive de fazer um intervalo para cumprir o serviço militar. Quando voltei, para trabalhar no Tours D’Argent, o ‘chef’ daquele restaurante disse-me que seria bom ir bater à porta do Paul Bocuse.

O que aprendeu com ele?

Quando ali entrei, fui obrigado a rever a minha percepção sobre a cozinha. Tive de esquecer tudo o que tinha aprendido e ganhei a capacidade de reaprender. Foi um choque, porque eu vinha de uma escola moderna, elitista e vanguardista e, de repente, fui obrigado a regressar à Idade da Pedra.

Houve um choque entre a tradição e a inovação.

Sim, acima de tudo na forma de pensar, mas fui-me apercebendo que ele estava certo. Paul Bocuse é um homem do campo, tem uma ideia muito simples da gastronomia. Porém, soube exportar uma imagem da França e ser um grande embaixador do país no Mundo. Acima dele só está Charles De Gaulle.

E continua a ser o rei da gastronomia francesa.

Exacto. Hoje, quando se fala nele, pensamos num dinossauro da gastronomia. E isso é inacreditável, porque ele já é visto como um ‘chef’ antiquado, que não faz a comida da moda, há muito tempo. Mas, a nível mundial, existirá sempre uma época pré-Bocuse e outra pós-Bocuse. É por causa dele que estamos aqui hoje. Antes ninguém entrevistava um cozinheiro! (risos)

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Mas isso também teve um efeito perverso. Hoje em dia qualquer cozinheiro é facilmente reconhecido.

Sim, isso parece que tem de acontecer e não há qualquer reflexão à volta disso. Isto é um passo em falso, nada se vai construir a partir daqui. É um ‘fait-divers’ que não me cativa muito. Esses jovens cozinheiros dominam as técnicas, mas esquecem-se que a cozinha não é baseada na técnica. A essência da cozinha está na alma e no coração. Se você tiver 25 anos e quiser ser cozinheiro, tem de ser humilde, senão não se safa. Essas pessoas atingem o topo da carreira demasiado cedo e ainda não fizeram nada. Não sei se esta é a melhor forma de gerir uma carreira.

Acredita que há uma crise de valores na gastronomia contemporânea?

Acho que sim. Hoje em dia andamos constantemente à procura do artifício, mas acredito que tenho de seguir outro caminho. Qual será, afinal, a essência de uma boa refeição? Alimentar a nossa emoção ou saciar a nossa fome? É por isso que fazer cozinha hoje é muito complicado…

Qual é a sua missão quando entra na cozinha?

Ser feliz. Gosto de cozinhar para as pessoas como se estivesse a recebê-las em minha casa. Cozinho de uma forma natural, mas gosto de arriscar e surpreender o cliente. Tento sempre que a cozinha não seja uma repetição do dia anterior.

E qual é o conselho que dá aos jovens cozinheiros?

É preciso ser humilde e perceber a quem nos dirigimos. Não devemos ter medo de arriscar, mas o objectivo de um cozinheiro é sobretudo agradar sem impor nada ao cliente. Acima de tudo, é preciso perceber a sua cultura e interpretá-la da forma mais correcta. Nós andamos há muito tempo a tentar recriar as comidas das nossas avós e não conseguimos. E porquê? Porque estamos demasiado preocupados com aquilo que vem nos livros. Se estivermos presos à técnica, vamos perder o essencial… O que está aqui [aponta para o coração]. É isto que faz a diferença.

Acredita que a ciência irá ter sempre um papel secundário na alta gastronomia?

Esta actividade está sempre a evoluir, mas um cozinheiro nunca será um cientista. A ciência vai ajudar a perceber melhor o que estamos a fazer, mas nunca irá substituir a emoção que depositamos em cada receita. Andamos à procura de um futuro melhor, mas isso passará sempre por uma alimentação mais saudável, cada vez mais exigente. De resto, as técnicas que utilizamos hoje na cozinha são as mesmas desde há cem anos.

Mas, afinal, como é que um francês se apaixona pela gastronomia tradicional portuguesa e vem trabalhar para Portugal?

Ao longo destes anos consegui perceber que o Mundo é um lugar interessante, curioso e recheado de culturas muito diferentes. Portanto, durante as minhas viagens aproveitei para alargar os meus horizontes a nível culinário. Numa dessas viagens fiquei a conhecer a comida portuguesa. Achei-a muito simples, espontânea e fácil de aprender. Numa casa portuguesa sou sempre bem recebido, como muito bem. A comida é generosa. Não é qualquer país que tem essa facilidade em cozinhar. Fiquei surpreendido pela qualidade do peixe, do azeite e dos enchidos. Entretanto, em 2001, fui convidado para chefiar a cozinha do Restaurante Valle-Flôr e aceitei.

Muita gente diz que a comida portuguesa é pobre.

Julgo que a comida portuguesa não é pobre. As gastronomias ditas “pobres” são as mais ricas. Quando um povo sofre isso reflecte-se na comida. No Alentejo, por exemplo, aproveita-se tudo para cozinhar e essa é a riqueza da comida alentejana. Os franceses também conseguem utilizar tudo na cozinha, sem preconceitos, porque nos últimos seiscentos anos passaram quinhentos em guerra e foram obrigados a cozinhar qualquer coisa para se alimentarem.

E quando chegou a Portugal, vinha com a ideia de reinventar a gastronomia portuguesa?

Eu não vim inventar nada, já está tudo inventado. Eu só peguei na raiz da gastronomia portuguesa e tentei fazer algo com que o cliente não se sentisse chocado. Portanto, não considero que tenha profanado, de alguma forma, o património da gastronomia portuguesa.

Mas deu-lhe alguma coisa de novo.

Talvez o orgulho. Se calhar, o Pestana Palace foi o primeiro local a ter um produto de excelente qualidade, com identidade portuguesa, e servido num hotel de luxo. E isso foi bem recebido pelos portugueses. É uma grande vitória. Penso que a minha equipa fez um trabalho que marcou a cidade e o País.

Não teve receio da reacção do paladar mais conservador?

Claro que sim. Contudo, acredito que um bom cozinheiro tem de arriscar e tentar fazer algo diferente. Quero, acima de tudo, transmitir aos cozinheiros mais jovens que esta profissão pode ser muito aliciante. O país necessita de gente capaz de dignificar a gastronomia portuguesa. Só assim é que esta poderá ser servida em qualquer parte do Mundo.

Acredita que isso é possível?

Sim, claro. Basta ter orgulho e não ter receio de arriscar, ou fazer asneiras.

É isso que falta aos cozinheiros portugueses?

Julgo que a tradição portuguesa é muito mal entendida pelos portugueses. Mas, nos últimos anos, o panorama tem vindo a melhorar. Antigamente, o cozinheiro português apostava na gastronomia internacional, mas acho que agora já não tem tanto receio de se identificar com a sua comida. A gastronomia feita por portugueses tem de ser portuguesa. Mais nada.

É por essa razão que existem poucos restaurantes portugueses com estrelas no “Guia Michelin”?

Possivelmente. Mas esse guia é gerido por espanhóis e eles não têm qualquer interesse em que o país cresça. Hoje em dia, a Espanha não tem qualquer ligação cultural com Portugal e são países completamente opostos. E esse guia discrimina a cultura do país. Seria importante encontrar um português que avaliasse os restaurantes portugueses, porque é impossível um espanhol entender uma caldeirada ou um sarrabulho.

Nunca se imaginou a fazer outra coisa?

Não. Às vezes, sinto-me angustiado com a possibilidade de perder a vontade de cozinhar, porque não sei se teria forças para fazer outra coisa qualquer.

E como é que ocupa os seus tempos livres?

Adoro caminhar. Mas quando tenho dois dias de folga, num deles tenho de cozinhar para a família. É sagrado e bom para o meu equilíbrio. Se passar um dia de folga enfiado na cozinha, sou um homem feliz. Também gosto de cozinhar com a minha filha mais nova. Enfim, gostava de ter outro passatempo, mas ainda não encontrei nada que me agradasse.

Há alguma diferença entre cozinhar para a família e para os seus clientes?

Pouca, mas tento sempre surpreender. Quando cozinho para a família, gosto de experimentar e introduzir algo fora do comum. Para mim, a cozinha é um centro de convívio e a alma de uma família. E quando esse convívio não acontece, julgo que há um certo mal estar… Antigamente, a cozinha era um espaço lúdico, aberto, onde os jovens podiam crescer melhor. Quando era miúdo, lembro-me que todos os fins-de-semana havia uma festa lá em casa. Organizavam-se serões à volta da mesa e eu e a minha irmã mais velha ajudávamos sempre o meu pai a receber os amigos. No fundo, era tudo um jogo, uma brincadeira. Hoje, as cozinhas têm de ser bonitas, limpas e organizadas, estão fechadas a essas brincadeiras.

O que lhe falta fazer?

Gostava de estar envolvido num projecto educativo a nível nacional que ajudasse os jovens a perceber o que estão a comer, a saber identificar os alimentos e porque estes são tão importantes. Acho que deveria haver uma disciplina que se debruçasse sobre isto em todas as escolas. É incontornável, porque já não existem as mães e as avós de antigamente, que sabiam cozinhar de forma natural e cujas técnicas iam passando de geração em geração. Isso já não acontece. A sociedade mudou: a maioria dos nossos pais já não cozinha em casa. E isso reflecte-se na percepção que os jovens têm actualmente da comida. É assustadora! Não é normal que uma criança de 10 anos não saiba a diferença entre uma couve e outro legume qualquer. Estamos a falar do futuro de um país, que está a ser mal alimentado e vai ficar doente. E nós podemos ajudar, temos de chamar a atenção para esse problema… É por isso que os cozinheiros têm um papel importante na sociedade de hoje.

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